domingo, 17 de janeiro de 2016

As mãos do pai

Em outubro, papai morreu de repente, após o diagnóstico de uma doença degenerativa e sem cura, feito alguns meses antes. O que havia começado nas pernas, fazendo-o caminhar com dificuldade, logo se espalhou por todo o corpo, transformando meu velho de quase 1,90m em um homem frágil. Eu, que tanto penei para que ele cuidasse da saúde, senti de imediato a falta da careca e da barriga de chope, cultivada há pelo menos vinte anos. O coroa até queria melhorar, mas era feliz na birosca da esquina.

Passamos pouco tempo juntos. Por vários anos, a memória mais triste que carreguei era a do meu pai indo embora de casa. Enquanto segurava as malas, dizia que viria me buscar toda semana. Lembro de muitas vezes estar debruçada na janela, e nada do velho aparecer.

A criança que eu era, aos sete anos de idade, se acostumou com a ausência rapidamente, mas tinha fobia de perdê-lo depressa. Ele era saudável, mas era mais velho do que os outros pais, e, por além do parentesco pai e filha, sempre senti como se algo a mais nos vinculasse. Não lembro de conversas profundas, grandes conselhos ou acontecimentos extraordinários. Mas, toda vez que me via, ele chorava feito moleque, e eu via um pedaço meu que eu jamais enxerguei em gente alguma.

Nas últimas vezes em que nos encontramos, eu colocava um samba para tocar e ele chorava como nunca, provavelmente por causa da doença. Eu não sabia o que falar, mas sabia que ele gostava do que ouvia, e o choro do meu pai, junto ao meu, de certa forma nos conectava - como se, no silêncio das letras de João Nogueira, Cartola e Candeia, nós percebêssemos a ligação que pouco aproveitamos em vida.

Papai era retraído - apesar de nada discreto -, e tinha dentro dele sentimento demais represado. Era um homem bom de verdade, apesar de agora sentir como se eu o conhecesse muito pouco. Em vida, não tive a mesma sensação, pois sempre me fiei no tempo que teríamos pela frente. Erramos os dois na contagem. Quando começou a adoecer, suspeitava de uma doença ou outra, como hipocondríaco que sempre foi. Dizia que tomaria tal remédio, que com o vizinho funcionara bem, e que então poderíamos viajar e aproveitar juntos. Quando descobriu o que era, de verdade, carregava no olhar uma tristeza quase transparente, talvez por tudo o que não iria viver.

Há algum tempo, tenho tido sonhos constantes com ele - cheguei a lhe contar mais de um. Alguns com imagens tão fiéis, como retratos da minha infância. Penso em tudo o que não vivemos e em todas as vezes que poderia tê-lo trazido para perto, e não o fiz. No último sonho, há poucos dias, ele corria por um espaço imenso, com a velocidade que há muito tempo suas pernas impediam. Ele me encontrava e dizia, com a clareza que já não tinha, que havia se curado milagrosamente; e então ele pulava, se mexia, dançava - como se quisesse provar que estava apto a qualquer coisa no mundo.

Quando foi internado - pela primeira e última vez - minha madrasta me telefonou e eu não atendi imediatamente. O celular estava na mão, mas eu não tive coragem. Talvez fosse minha fobia infantil de perdê-lo precocemente - lembrei que não sou boa em dizer adeus às coisas. Nos últimos dias que tivemos, segurei muito as mãos do velho, que não sentiam mais nada. Era que, naquele corpo magro, diferente do que eu conhecia, as mãos gigantescas eram as mesmas. E a vida é assim: cheia de adeuses. Mas as memórias - como as mãos do meu pai - eu não esqueço.

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