quinta-feira, 24 de janeiro de 2013
Juntando cacos
De tudo restou apenas isto: caixas com lembranças antigas, organizadas em uma ordem cronológica confusa, que ela passara a madrugada recordando sem nenhuma lágrima, folheando tudo que parecia vazio de sentido, mas repleto de sentimento. Sentiu-se paralisada por dúvidas, tomada por uma inconstância que extravasava todos os seus limites. Estava ela à margem do que entendia por si e que se dissolvia em doses densas, naquele universo que era desempacotado, aos poucos, com raiva e com zelo, medo e abnegação. Queria tacar no ventilador as recordações, tão particulares que desejava esquecer, as coisas que disseram em segredo, a pretensão idiota de quem ainda é cru diante do mundo, tudo, ela quis lançar para quem quisesse ver, fazendo acreditar que nada mais lhe era importante, já que estava escancarado. Apertou os olhos com força, tentando buscar na memória algum sentimento bom, mas não conseguiu. Vestiu então o moletom velho e furado que pertencera a ele, esperando que aquecesse, mas só lhe trouxe mais frio. Parecia inacreditável que uma roupa tão fedorenta já lhe tivesse sido uma espécie de refúgio, pedaço de um carinho diferente, capaz de protegê-la quase sempre, mas que se transformara numa peça causadora de náuseas, simplesmente. Abriu a janela com calma, reparou no silêncio da rua; quase nada parecia vivo, de nenhum dos lados. Por alguns segundos, diante da vida que corre sempre e sempre mais, pensou o que faria da sua, que naquele momento se apresentava de uma forma diferente, afinal sentia como se os pais, os primos, vizinhos e conhecidos, todos, estivessem sempre lhe fazendo essa pergunta. Sentiu-se desesperada por medo, um medo insano de não conseguir realizar mais nada sem companhia, despertando dependência justo nela, que passou a vida tentando provar ser alguém desapegado. O telefone que tocava parecia comunicar que o dia já havia começado o suficiente para que alguém pensasse nela. Atendera em um falso tom esfuziante que causara espanto em quem falava do outro lado. Quando lhe perguntaram como havia passado nos últimos tempos, sentiu-se estranha, como se aquilo fosse mais que uma pergunta habitual. Então teve vontade de chorar, subitamente. Ela, na verdade, nunca entendera esse momento, não tinha até então derramado uma lágrima, nem sentido vontade, mas com uma simples pergunta sentiu-se no ímpeto, quase aconteceu, teve que se controlar com ordens duras como "não se deixe abalar. Não aqui, não nesse momento". Desligou o telefone e foi escovar os dentes, sentindo um prazer prolongado em escovar um por um.
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