sábado, 10 de setembro de 2011

Ela olhava atentamente a tela do computador barato, enquanto repetia o clássico movimento de uma mecha negra em torno da bic azul-marinho. Estava cansada de desconfiar que havia perdido o dom do ofício e não suportava o medo de perceber que havia feito a escolha errada. Não era possível que isso estivesse acontecendo, pensava, desde criança os sonhos eram os mesmos e, por mais que as coisas tivessem, por vezes, mudado de sentido, nunca duvidara do sonho de jornalista. Com grande parte da família havia sido assim, com o pai, com a mãe e com alguns tios também, a ideia era fixa. Hoje, com quase trinta anos, Alícia já tem suas dúvidas quanto a tal profissão, quase predestinada. Não que alguém, alguma vez, tenha a exigido alguma coisa, mas tendo crescido em um meio uniforme, nunca tinha se imaginado por outros caminhos. O irmão, dez anos mais velho, optou por matemática e de vez em quando ela ainda se pergunta se não deveria ter sido essa a sua escolha.

Alícia vive sozinha há quase quatro anos em um apartamento pequeno e bem mobiliado. Na época em que decidiu sair da casa dos pais, a mãe entrou numa profunda onda de preocupação, fazendo questão de ajudar, e muito, na compra de quase tudo que hoje compõe o apartamento. Com o salário de escritora de um blog bastante visitado e de um pequeno jornal alternativo, tenta levar as contas que não param de chegar e, sem tempo até de dar banho no gato, ela procura ler notícias de quase todas as fontes que conhece. Faz tempo que ouve o tilintar dos ponteiros no subconsciente, quase como uma bomba relógio, já não encontra brecha para nada. A secretária eletrônica a informa, quase diaramente, da falta que faz para muitos amigos, que a chamam de tudo, sumida e desnaturada, sem que entendam a dureza dos fatos.

Cansada da posição, cruzou as pernas sob a confortável poltrona do escritório e, sem progredir na matéria que dentro de poucos minutos deveria ser entregue ao jornal, puxou sem pensar um livro da dezena empilhada na mesa ao lado e, rapidamente, viu tudo se esparramar pelo chão. Levantou-se para arrumar e, enquanto agachada,fazia inúmeras auto-punições adolescentes, de forma que punia-se por isso também. Não era necessário um bom observador para perceber que a casa precisava de reformas, o piso, há pouco sintecado, já implorava por reparos e as paredes verde musgo gritavam por uma nova tintura. Havia caixotes espalhados até no banheiro, muitos com livros, alguns intocados, outros com CDs e discos de vinil.

Alícia tem olheiras roxas e profundas que denunciam meses de noites mal dormidas. Os cabelos são escuros, quase negros, a pele branca e os olhos azuis vibrantes. Quando pequena, as crianças passavam horas compenetradas, tentando desvendar a verdadeira cor dos olhos de traços orientais. Alícia jurava de pés juntos que mudavam de cor, de acordo com a claridade, mas crianças por vezes teimam em definir o que não se deve. Com doze anos já era leitora assídua de vários jornais e, aos dezesseis e meio entrou na Faculdade Federal, sem nem ao menos imaginar a inépcia com a qual se depararia futuramente.

Ainda indisposta, Alícia voltou ao computador e, a fim de despertar os sentidos, entornou uma xícara de café sem açúcar. O telefone de casa tocou e, com medo de ser o editor, cobrando o trabalho que deveria estar pronto, não atendeu. A página ainda estava em branco, branco-angústia, como costumava chamar, e não fazia a menor ideia de como dizer isso. Quando a ligação entrou na caixa postal, ouviu a voz da avó, de quase oitenta anos, que a envolveu com palavras ternas e a fez despertar de uma solidez rígida, uma impermeabilidade rara que ultimamente tomara conta de seu subconsciente.

O telefone tocou novamente, era o editor. Alícia atendeu, disse que não havia nem começado, e desligou. Sentiu-se fraca, tola, um tanto impulsiva e adolescente. Podia sentir as oportunidades escapando pelos dedos. Mas ela sabia que era forte e, pela primeira vez em anos, fez o que teve vontade. Pegou uma garrafa de vodka, bebeu um longo gole e atirou-se ao chão, obedecendo suas vontades e permitindo-se ficar quieta por alguns instantes.